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sexta-feira, 21 de junho de 2019

SÉRGIO MORO E O LEGALISMO



Há uma hierarquia nas leis. Há leis eternas e absolutas; há aquelas que devem ser observadas quase sempre, mas comportam certas exceções; e há, por fim, certas leis meramente regulamentares cuja subordinação ao caso concreto é muito maior — estão numa íntima dependência do bom senso para que sirvam realmente à justiça. Do primeiro tipo temos, por exemplo, a lei suprema “Amar a Deus sobre todas as coisas”, lei esta que nunca pode ser quebrada seja qual for a circunstância; do segundo tipo temos, por exemplo, a lei “Não matar”, que proíbe absolutamente o assassinato, mas não proíbe de modo absoluto que se mate uma pessoa. A Doutrina da Igreja ensina que é lícito que alguém seja punido com a pena capital por ter cometido algum crime grave; ensina também que é lícito dar morte ao inimigo em guerra justa; e ensina, por fim, que posso matar alguém caso isto seja necessário para defender a própria vida; do terceiro tipo temos os mais diversos regulamentos, que incluem certas leis de trânsito, regras de estabelecimentos em geral, bem como certas normas do código de processo penal.
O racionalismo e o positivismo geraram como um dos seus frutos essa sede de uma sociedade arquitetada e controlada sob o “império da lei”. Uma planificação “técnica e científica” da sociedade arvorou-se em meta moral a ser atingida. Tanto é assim que a “impessoalidade” é um dos princípios da administração pública (artigo 37 da Constituição Federal). Se este princípio teoricamente impede o favorecimento injusto, impede também o favorecimento justo; impede ainda que se julgue segundo a prudência em cada caso concreto.
Esse caráter do ordenamento jurídico moderno não consegue se conciliar com as exigências da realidade, não consegue substituir a verdadeira virtude e por fim não consegue, por extensão, substituir a prudência. O que acontece então? O chamado “arrepio da lei” torna-se cada vez mais frequente tanto para o bem quanto para o mal. O remédio que se dá então não passa de mais um veneno incutido na sociedade: o aumento vertiginoso de detalhamentos regimentais. Para atender as exceções criam-se cada vez mais dispositivos, e a inteligência mingua-se porque cada vez mais seu espaço deliberativo some para dar lugar ao seguimento mecânico de um regulamento, como se o ideal a ser conquistado fosse a construção de uma máquina que deliberasse perfeitamente por ter em si o julgamento ideal de todos os casos concretos. O filósofo Jean Daujat explica isso com maestria, concedamos a ele a palavra:
“Outro sinal da degenerescência administrativa da vida social é o automatismo do regulamento geral e sistemático: o regulamento vale por si, independentemente de casos e circunstâncias; é como a lei moral de Kant. Em vez de investigar o que há a fazer na situação real para obter um bem real, a administração executa automaticamente o que prescreve o regulamento. Não se lhe vá mostrar que, justamente no caso concreto, as prescrições do regulamento originam uma catástrofe: a administração nada se preocupa com o bem a conseguir; — é o regulamento e só este importa.
A administração não tem qualquer outra finalidade a não ser o seu próprio funcionamento. Daí resulta uma verdadeira degradação humana, em que os homens perdem todo o sentido do bem a realizar e da aplicação da inteligência em busca dos meios adaptados à situação, para se tornarem autômatos da máquina administrativa, executando, à risca, o regulamento. Em particular, as virtudes da autoridade — zelo do bem que está a nosso cargo, lucidez intelectual para eleger os meios de o realizar, vontade firme para decidir; iniciativa, consciência das responsabilidades— desaparecem totalmente em proveito da inércia, da rotina, da passividade. Não é para admirar que se encontrem cada vez menos homens capazes de assumir responsabilidades. Aliás o orgulho recusa obediência a um homem que decide em conformidade com a situação real (é o que chamam “o arbitrário”); prefere o automatismo dum regulamento anônimo e cego.”

Estou convicto de que Sérgio Moro deu certa contribuição para a justiça. Quanto aos novos fatos ventilados pelos vazamentos não me julgo capaz de emitir nenhum julgamento, pois não estou suficientemente inteirado dos fatos, além do mais esse não é meu objetivo neste artigo. Posso dizer, contudo, que as críticas com que me deparei nos últimos dias a seu respeito padecem em grande medida do legalismo que apontei acima.
Outro exemplo que ilustra o assunto aqui tratado foi o desmando do STF que, usurpando as competências do Congresso, legislou em prol de uma lei iníqua que trata da “homofobia”. O fato de ter usurpado as competências do Congresso é uma infração meramente regulamentar, não deveríamos nos preocupar com isso. O que é realmente grave no caso é própria lei da “homofobia”, pois contraria abertamente as leis de Deus. Se reclamamos como base na questão regulamentar seremos, se quisermos ser coerentes, obrigados a reclamar também caso o Congresso crie uma lei boa que contrarie a Constituição (o que não é difícil, pois a Constituição é ruim em muitos pontos). Ora, isso é inadmissível! Portanto, abandonemos o legalismo moderno e nos pautemos no que a Igreja ensina.
Há os que dizem que desprezando tais regulamentos estaríamos abrindo espaço para todo o tipo de desordem etc. Nada mais falso, pois não se defende aqui um desprezo irrestrito a esses regulamentos secundários do chamado “estado democrático de direito”, trata-se apenas de respeitá-los seguindo a devida hierarquia das leis, trata-se em última instância de obedecer antes a Deus que aos homens (ou aos regulamentos). Além do mais, quem promove a desordem são justamente os que obedecem a esses dispositivos legais iníquos. Não está regulamentado o divórcio? Não está regulamentado o aborto? Não está regulamentado o “casamento gay”? Não está regulamentada lei contra a “homofobia”? Pois então, quem promove a desordem? Certamente os que promovem tais leis iníquas e os que dão mais valor a regulamentos secundários que à verdadeira justiça. Portanto, deveríamos, a depender do caso, congratular um Ministro do STF se porventura este usasse seu poder para legislar, desde que essa lei fosse realmente boa. E não se diga que estou defendendo que os fins justificam os meios, ou que estou dizendo que se pode fazer um mal para alcançar um bem, pois ao agir assim o hipotético Ministro não teria feito nenhum mal, teria feito apenas um bem, pois se é lícito até mesmo resistir ao próprio pai para obedecer a Deus é obviamente lícito, para obedecê-Lo, resistir a um regulamento contingente.