Há uma hierarquia nas leis. Há
leis eternas e absolutas; há aquelas que devem ser observadas quase sempre, mas
comportam certas exceções; e há, por fim, certas leis meramente regulamentares cuja
subordinação ao caso concreto é muito maior — estão numa íntima dependência do
bom senso para que sirvam realmente à justiça. Do primeiro tipo temos, por
exemplo, a lei suprema “Amar a Deus sobre todas as coisas”, lei esta que nunca
pode ser quebrada seja qual for a circunstância; do segundo tipo temos, por
exemplo, a lei “Não matar”, que proíbe absolutamente o assassinato, mas
não proíbe de modo absoluto que se mate uma pessoa. A Doutrina da Igreja
ensina que é lícito que alguém seja punido com a pena capital por ter cometido
algum crime grave; ensina também que é lícito dar morte ao inimigo em guerra
justa; e ensina, por fim, que posso matar alguém caso isto seja necessário para
defender a própria vida; do terceiro tipo temos os mais diversos regulamentos,
que incluem certas leis de trânsito, regras de estabelecimentos em geral, bem
como certas normas do código de processo penal.
O racionalismo e o positivismo
geraram como um dos seus frutos essa sede de uma sociedade arquitetada e
controlada sob o “império da lei”. Uma planificação “técnica e científica” da
sociedade arvorou-se em meta moral a ser atingida. Tanto é assim que a
“impessoalidade” é um dos princípios da administração pública (artigo 37 da
Constituição Federal). Se este princípio teoricamente impede o favorecimento
injusto, impede também o favorecimento justo; impede ainda que se julgue
segundo a prudência em cada caso concreto.
Esse caráter do ordenamento
jurídico moderno não consegue se conciliar com as exigências da realidade, não consegue
substituir a verdadeira virtude e por fim não consegue, por extensão,
substituir a prudência. O que acontece então? O chamado “arrepio da lei”
torna-se cada vez mais frequente tanto para o bem quanto para o mal. O remédio
que se dá então não passa de mais um veneno incutido na sociedade: o aumento
vertiginoso de detalhamentos regimentais. Para atender as exceções criam-se
cada vez mais dispositivos, e a inteligência mingua-se porque cada vez mais seu
espaço deliberativo some para dar lugar ao seguimento mecânico de um
regulamento, como se o ideal a ser conquistado fosse a construção de uma
máquina que deliberasse perfeitamente por ter em si o julgamento ideal de todos
os casos concretos. O filósofo Jean Daujat explica isso com maestria,
concedamos a ele a palavra:
“Outro sinal da
degenerescência administrativa da vida social é o automatismo do regulamento
geral e sistemático: o regulamento vale por si, independentemente de casos e
circunstâncias; é como a lei moral de Kant. Em vez de investigar o que há a
fazer na situação real para obter um bem real, a administração executa
automaticamente o que prescreve o regulamento. Não se lhe vá mostrar que,
justamente no caso concreto, as prescrições do regulamento originam uma
catástrofe: a administração nada se preocupa com o bem a conseguir; — é o
regulamento e só este importa.
A administração não tem
qualquer outra finalidade a não ser o seu próprio funcionamento. Daí resulta
uma verdadeira degradação humana, em que os homens perdem todo o sentido do bem
a realizar e da aplicação da inteligência em busca dos meios adaptados à
situação, para se tornarem autômatos da máquina administrativa, executando, à
risca, o regulamento. Em particular, as virtudes da autoridade — zelo do bem
que está a nosso cargo, lucidez intelectual para eleger os meios de o realizar,
vontade firme para decidir; iniciativa, consciência das responsabilidades—
desaparecem totalmente em proveito da inércia, da rotina, da passividade. Não é
para admirar que se encontrem cada vez menos homens capazes de assumir
responsabilidades. Aliás o orgulho recusa obediência a um homem que decide em
conformidade com a situação real (é o que chamam “o arbitrário”); prefere o
automatismo dum regulamento anônimo e cego.”
Estou convicto de que Sérgio
Moro deu certa contribuição para a justiça. Quanto aos novos fatos ventilados
pelos vazamentos não me julgo capaz de emitir nenhum julgamento, pois não estou
suficientemente inteirado dos fatos, além do mais esse não é meu objetivo neste
artigo. Posso dizer, contudo, que as críticas com que me deparei nos últimos
dias a seu respeito padecem em grande medida do legalismo que apontei acima.
Outro exemplo que ilustra o
assunto aqui tratado foi o desmando do STF que, usurpando as competências do
Congresso, legislou em prol de uma lei iníqua que trata da “homofobia”. O fato
de ter usurpado as competências do Congresso é uma infração meramente
regulamentar, não deveríamos nos preocupar com isso. O que é realmente grave no
caso é própria lei da “homofobia”, pois contraria abertamente as leis de Deus.
Se reclamamos como base na questão regulamentar seremos, se quisermos ser
coerentes, obrigados a reclamar também caso o Congresso crie uma lei boa que
contrarie a Constituição (o que não é difícil, pois a Constituição é ruim em
muitos pontos). Ora, isso é inadmissível! Portanto, abandonemos o legalismo
moderno e nos pautemos no que a Igreja ensina.
Há os que dizem que
desprezando tais regulamentos estaríamos abrindo espaço para todo o tipo de
desordem etc. Nada mais falso, pois não se defende aqui um desprezo irrestrito a
esses regulamentos secundários do chamado “estado democrático de direito”,
trata-se apenas de respeitá-los seguindo a devida hierarquia das leis, trata-se
em última instância de obedecer antes a Deus que aos homens (ou aos
regulamentos). Além do mais, quem promove a desordem são justamente os que
obedecem a esses dispositivos legais iníquos. Não está regulamentado o
divórcio? Não está regulamentado o aborto? Não está regulamentado o “casamento
gay”? Não está regulamentada lei contra a “homofobia”? Pois então, quem promove
a desordem? Certamente os que promovem tais leis iníquas e os que dão mais
valor a regulamentos secundários que à verdadeira justiça. Portanto, deveríamos,
a depender do caso, congratular um Ministro do STF se porventura este usasse
seu poder para legislar, desde que essa lei fosse realmente boa. E não se diga
que estou defendendo que os fins justificam os meios, ou que estou dizendo que
se pode fazer um mal para alcançar um bem, pois ao agir assim o hipotético
Ministro não teria feito nenhum mal, teria feito apenas um bem, pois se é
lícito até mesmo resistir ao próprio pai para obedecer a Deus é obviamente
lícito, para obedecê-Lo, resistir a um regulamento contingente.