Por Uma Intelectualidade Cristã!







terça-feira, 23 de abril de 2019

A AUTORIDADE DOS CHEFS


         

          Revelo já ao caro leitor que este artigo é uma análise do programa televisivo chamado Masterchef. Sem mais delongas entremos no assunto que nos interessa.
            O paladar, o olfato e o tato são sentidos mais distantes da razão e, portanto, mais grosseiros e próximos de nossa natureza animal. Não obtemos muitos conhecimentos a partir deles; não é com eles que contemplamos o belo etc. Como parte de nossa natureza são, obviamente, úteis para o cumprimento de importantes funções. São também fonte de prazeres e estes precisam ser moderados pela virtude da temperança para que o homem, no cumprimento de suas funções animais, não se afaste de seu fim último (Paraíso). O anseio desmedido de satisfazer o paladar é uma desordem contra a qual nos previnem os santos com seus salutares conselhos e igualmente com seu próprio exemplo. Leiamos a propósito o que nos diz São Francisco de Sales: “Em seguida, não é pequena mortificação submeter em tudo o seu gosto e sujeitá-lo a todos os pratos, e, enfim, esta maneira de mortificação não é ostensiva, não incomoda a ninguém e é inteiramente conforme às regras da civilidade. Rejeitar uma iguaria, para comer outra, examinar e estar a escolher dentre todos os pratos, não achar nada bem preparado e limpo bastante e outras coisas semelhantes – tudo isso denota uma pessoa mole, gulosa e pouco mortificada.”[1]
            Não se deve, no entanto, cair num rigorismo, afirmando que qualquer arte culinária ou esmero no preparo da comida sejam condenáveis em si mesmos. As virtudes atuam em conjunto, e a temperança deve ser auxiliada por outra virtude cardeal: a prudência. Dessa forma se poderá julgar, nas variadas situações, o que ultrapassa ou não os limites estabelecidos pela razão.
            Tendo em vista o que foi dito, devemos nos perguntar: o programa Masterchef incentiva a temperança? Evidentemente não. Outra pergunta: o Masterchef mantêm-se nos justos limites de repassar técnicas culinárias? Evidentemente não, pois o caráter culinário do programa é claramente ofuscado pelo seu caráter de entretenimento.
            Outra coisa interessante a ser notada nesse programa é o modo como nele se dá as relações de autoridade. Num mundo onde a autoridade legítima é contestada o tempo inteiro; onde a obediência muitas vezes é erradamente tratada como vício e não como virtude, eis que surge um programa onde três sumidades gastronômicas são obedecidas bovinamente e seus juízos, repreensões, apreciações etc. são acatados como verdades absolutas. Isso é deveras notável, sobretudo num mundo que ousa questionar até mesmo a Verdade revelada por Deus. E tudo isso num campo que permite ampla dose de opinião, a saber, o paladar. “Sim, chef”, “não, chef”; “ok, chef”; “entendi, chef” tudo isso sob o guante de um relógio dramático que os fustiga e a apreensão de receber como recompensa de seus esforços aqueles epítetos depreciativos característicos do programa.
            Estamos diante de um entretenimento fútil, característico de uma época que rejeitou o absoluto verdadeiro e tenta então buscá-lo onde ele não existe.


[1] São Francisco de Sales, Filoteia, Parte 3 – Capítulo 23.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

MEDITAÇÕES SOBRE O QUINTO MISTÉRIO DOLOROSO


JESUS CRISTO É CRUCIFICADO

            O Redentor é pregado na Cruz. As mãos que abençoaram; as mãos que curaram; as mãos que consagraram o pão e o vinho são atravessadas por pregos. Os pés que andaram no deserto; os pés que percorreram longas distâncias em busca das ovelhas perdidas são igualmente transpassados. Aqui se confirma mais uma vez uma constante na Vida de Nosso Senhor: receber castigos pelo bem que faz.
            Os homens em geral se aproveitam do poder que têm para vingar qualquer afronta recebida. O Cordeiro de Deus, ao contrário, mantém imóveis Suas Mãos Onipotentes para receber os golpes que as atravessam. (Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem)
            A Cruz, agora santificada por Deus que se fez homem, agora unida àquele Corpo Redentor, é levantada. Os olhos da Fé veem que nesse momento Deus é exaltado, mas outra é a intenção do mundo corrompido, que levanta a cruz para expor Nosso Senhor ao escárnio. E é exatamente isso o que fazem os corações endurecidos, passam pela cruz e se dirigem a Cristo com zombarias, provocações e blasfêmias.

CRUCIFICADO ENTRE DOIS LADRÕES

            Deus tudo ordenou desde toda a eternidade. Sabia que no momento da crucifixão estaria entre dois malfeitores e quis, portanto, estar perto da miséria humana naquele momento decisivo para mostrar que diante de nossos pecados há duas atitudes que podemos tomar: arrependimento e súplica ou zombaria e obstinação.
            O mal ladrão blasfemava, pedia uma salvação, mas de modo a desafiar e duvidar: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!” O que queria esse ladrão? Ao que tudo indica queria a salvação de sua vida, que lhe estava sendo tirada devido aos seus crimes. Queria fugir do justo castigo que lhe fora infligido. Não queria, portanto, a justiça, pois queria fugir injustamente; não queria a misericórdia, pois não se arrependera de seus crimes. A salvação que ele pedia não era a salvação eterna, era uma salvação terrena; pedia ao Deus crucificado uma salvação falsa para continuar a ofendê-lo.
            Contrária é a atitude do bom ladrão. Primeiramente defende Nosso Senhor das blasfêmias do mau ladrão: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum.” Ele não pensa em si, ele pensa primeiramente em Deus; ele pensa primeiramente em cumprir um dever de justiça defendendo Nosso Senhor. E depois de cumprir esse dever de justiça, ele apela para a misericórdia: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” E como é consolador pensar no que acontece depois disso! Como é consolador ver em que medida Deus retribui aqueles que o defendem, que o consolam! “Jesus respondeu-lhe: ‘em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso’”.
            O bom ladrão não pediu uma salvação falsa, não pediu que Jesus lhe livrasse do castigo terreno que ele estava recebendo. O que pediu então? Pediu uma lembrança de Deus. Vejam isso! Pediu apenas que Deus se lembrasse dele! Um pedido tímido e delicado, como se não ousasse pedir muito. Um pedido de quem sabe que não merece nada. Um pedido vago e geral, sem conteúdo específico, submetendo-se assim à Vontade do Redentor. Nosso Senhor percebeu os anseios daquela alma, pois o Criador sabe o que a alma humana deseja, e diante de um pedido tão singelo deu o Paraíso ao bom ladrão.
            Este insigne malfeitor arrependido pediu que Nosso Senhor se lembrasse dele, e isso bastou, pois uma mera lembrança de Deus já significa a nossa salvação. Que bela cena essa! A humildade de um pecador e a magnanimidade de Deus; a singeleza de um pedido e a grandiosidade do que é concedido; a esperança de algo bom e o alcance do Sumo Bem.

DIVIDIRAM ENTRE SI AS VESTES DE CRISTO

            “Depois de o haverem crucificado, dividiram suas vestes entre si, tirando à sorte.” (Mateus 27, 35).
            A pilhagem não poderia ser mais completa: roubam-lhe a realeza; roubam-lhe a vida e até suas vestes são roubadas. A malícia do roubo é de fato perpetrada, mas a rigor Deus não pode ser roubado, pois tudo permanece sendo dEle. Tentam lhe roubar a realeza e isso fará com que reine com ainda mais glória; tentam lhe roubar a vida e então ressuscitará glorioso; tentam lhe roubar as vestes e então aparecerá vestido de majestade “O Senhor é rei e se revestiu de majestade”.  (Salmo 92, 1).
            Para que roubam as vestes de Cristo se nenhum outro homem é digno de usá-las? Aí está novamente o germe da revolta, a tentativa de usurpar o que é próprio de Deus.
            Três são as possibilidades ao se tocar as vestes do Senhor: aquela que as tocou com respeito e fé foi curada “Se tocar, ainda que seja na orla do seu manto, estarei curada.” (Marcos 5, 28) os que tocaram Suas Vestes com indiferença nada receberam[1]; e aqueles que as tocaram para o roubo tornaram-se culpados de um gravíssimo sacrilégio.

“EIS AÍ TUA MÃE”

            “Eis aí tua mãe” é o que diz Jesus do alto da cruz para o discípulo amado. “Eis aí...” aí onde? Ao lado do discípulo e em sua casa. Por uma concessão especial de Jesus crucificado Nossa Senhora está sempre ao nosso lado. Mãe de Deus sem concurso do homem e Mãe dos homens sem concurso do homem; Mãe de Deus por virtude do Espírito Santo e Mãe dos homens por dádiva do Filho.
            “Eis aí tua mãe” e que Mãe? Nada menos que a Mãe do próprio Deus; esposa do Espírito Santo; Concebida sem pecado original; a mais perfeita das criaturas. O Redentor segue fazendo o bem e não hesita em nos dar por Mãe a sua própria Mãe. Contemplemos tudo isso e vejamos o quanto somos devedores de Nosso Senhor e o quanto devemos nos esforçar para retribuir tão grandes graças.
            Ela é o nosso modelo de contemplação e meditação, pois contemplou toda a vida de seu divino filho instante a instante sem excetuar os momentos mais dolorosos. E tudo isso ela guardava no seu coração como nos diz as Escrituras. Então que coração é esse? É o Imaculado Coração. Sem pecado original, cheio de bondade e obediência. Um coração que, não bastasse a perfeição com a qual foi por Deus concebido, contemplou o sofrimento crudelíssimo sofrido pelo seu filho infinitamente inocente.
            Quando Deus formava uma Mãe para si pensava também em nós; e no auge de seu sofrimento revelou essa grande benção: “Eis aí tua mãe”. Levemo-na para nossa casa como fez o discípulo amado. Levemo-la para o nosso lar, para a nossa família, mas, sobretudo, para aquela casa interior da qual o Senhor afirma que está à porta e bate; e qual não será a sua alegria, se ao ser atendido, lá encontrar Sua Mãe Santíssima?

“TENHO SEDE”
           
            “Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura, disse: ‘Tenho sede’. Havia ali um vaso cheio de vinagre. Os soldados encheram de vinagre uma esponja e, fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca. Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: ‘tudo está consumado.’ Inclinou a cabeça e rendeu o espírito.” (João 19, 28-29).
            Jesus tinha sede das almas. Essa sede o acompanhou por toda a vida e no momento derradeiro ainda estava com Ele. Essa sede não foi saciada, pois o vinagre não mata a sede; podemos então concluir que a sede que acometia Nosso Senhor no momento próximo de sua morte continuou com Ele para além dessa vida; Nosso Senhor morreu com sede. Levou essa sede com Ele para a Glória Eterna da mesma forma que levou as cinco chagas. As almas puras são a água cristalina que alivia essa sede e os pecados são o vinagre que com seu azedume lhe flagelam o paladar. (Até seu paladar foi flagelado)
            Nosso Senhor finalizou sua obra sorvendo o vinagre que lhe ofereciam. Essa bebida azeda foi o que lhe deram para aliviar sua sede bendita “...na minha sede deram-me vinagre para beber.” (Salmos 68, 22). Manifestando sua sede pelas almas, Ele recebe o vinagre dos pecados, da indiferença, da zombaria e de toda sorte de humilhações. Cristo quis morrer sem consolo, quis sofrer até o fim para a Redenção do gênero humano. E quando bebe o vinagre diz “tudo está consumado”, como se dissesse: “Não recebo nenhum consolo nesta hora derradeira; tudo ocorreu conforme a Vontade do Pai. Levo essa sede de almas comigo para a Glória e sigo sofrendo as ofensas do homem em meu Sagrado Coração.”
            Depois dos mais atrozes sofrimentos, restava ainda passar por um momento crucial; faltava receber o salário do pecado alheio; faltava sofrer a morte. Vendo que tudo estava consumado entregou sua vida livremente. Entregou ao Pai seu espírito; entregou ao Pai o sacrifício perfeitíssimo, a obra completa. No Éden Deus havia dito ao homem que este morreria caso pecasse, de modo que a morte só existe em decorrência do pecado. O que não deve ter custado, portanto, a Nosso Senhor passar por esse terrível momento? Ele passou por algo que Ele jamais quis que existisse: a morte. Quando Deus disse para Adão que este morreria caso pecasse; já sabia que o pecado também custaria a morte de seu Filho. E então, nesse momento decisivo, a consequência do pecado se cumpre em sua máxima extensão: a morte do Filho de Deus. De fato, o salário do pecado é a morte, não só dos pecadores, mas também a morte do próprio Deus. Deus se fez homem, Deus nasceu, Deus sofreu e Deus morreu; tudo pela redenção dos homens.
           
SANGUE E ÁGUA

            Para atestar a morte de Jesus foi ordenado que lhe quebrassem as pernas, mas Ele já havia morrido. Não obstante, uma cruel, aguda e mortal lançada lhe é dada para atestar a morte. Depois de ser brutalmente maltratado e crucificado é com um golpe, que por si só bastaria para matá-Lo, que sua morte é confirmada. Desse ferimento saiu sangue e água. O sangue é sinal da Eucaristia; a água sinal do Batismo; e por extensão esse sangue e essa água benditos simbolizam todos os sacramentos e o nascimento da própria Igreja. Assim como Eva nasceu do lado de Adão, a Igreja nasceu do lado Cristo; assim como o homem é a cabeça da mulher; Cristo é a cabeça da Igreja.
            Por ocasião de um golpe de lança nasce a Igreja e isso nos lembra de que devemos carregar a nossa cruz e de que nada de bom nos virá sem sofrimento. Também devemos notar que apesar de já morto Cristo permitiu mais esse insulto; e mais uma vez aproveitou a violência feita pelos homens para prodigalizar sua Graça.

JESUS CRISTO FOI SEPULTADO

            Houve um dia em que a própria Vida morreu e foi sepultada.
            “Quando era já tarde — pois era a Preparação, isto é, a vigília de sábado —, foi José de Arimateia, membro ilustre do Sinédrio, que também esperava o reino de Deus, apresentou-se corajosamente a Pilatos, e pediu-lhe o corpo de Jesus. Pilatos admirou-se de que já estivesse morto; mandando chamar o centurião, perguntou-lhe se estava já morto. Informado pelo centurião, deu o corpo a José. José, tendo comprado um lençol, e tirando-o da cruz, envolveu-o no lençol, depositou-o num sepulcro, que estava aberto na rocha, e rolou uma pedra para diante da boca do sepulcro.” (Marcos 15, 42-47).
            Depois de tantos ultrajes o Redentor foi sepultado por um homem piedoso. José de Arimateia reparou (na medida de suas possibilidades) as injustiças sofridas por Nosso Senhor. Ainda que fossemos reparar apenas as injustiças sofridas durante a Sua Paixão não poderíamos fazê-lo a contento, quanto mais reparar a multidão de ofensas que a cada instante são perpetradas contra Nosso Senhor, e não obstante Ele aceita de bom grado as boas obras que fazemos como aceitou o benefício feito por José de Arimateia; e é Ele mesmo quem nos auxilia com sua Graça para que reparemos com boas obras os estragos que o pecado faz.
            José de Arimateia pode ser visto como uma figura do que é a conversão: Jesus, depois de ser insultado, ferido e morto devido à enormidade dos pecados, passa a ser respeitado por todo aquele que se converte. O amor de José de Arimateia para com Jesus contrasta com a violência sofrida anteriormente; assim como a vida de pecado contrasta com a vida da Graça. Depois de toda essa dedicação por Nosso Senhor, incorporada na atitude de José de Arimateia, a alma aguarda a Ressurreição e a Glória no Paraíso.


[1] Na ocasião em que a hemorroíssa foi curada e uma multidão comprimia Nosso Senhor, apenas a hemorroíssa foi curada porque apenas ela O tocou com Fé.