Por Uma Intelectualidade Cristã!







sábado, 30 de março de 2019

CRUZ POR MESAS

                 Diversas passagens do Evangelho nos mostram o caráter afetuoso de Jesus[1]. Obviamente todas as gentilezas, curas e outras boas obras que praticou estavam subordinadas à Redenção e isso não devemos perder de vista. No entanto, ainda que sem esquecer o caráter sobrenatural dessas passagens, gostaria de focar a seguir no aspecto exterior dessas obras de Cristo e de mostrar como recebeu por elas muitas ingratidões.
            Nosso Senhor desfez grandes males: ressuscitou mortos[2], curou cegos e aleijados[3], expulsou demônios[4] e sarou graves doenças[5]. Não deixou, entretanto, de suprir necessidades menores: compadecido da multidão faminta, multiplicou pães[6]; transformou água em vinho[7]; ajudou milagrosamente os apóstolos a pescarem[8]. E por todos esses bens recebeu ingratidões equivalentes: tendo ressuscitado mortos recebeu a morte; curado feridas e doenças recebeu chagas e açoites; multiplicado pães morreu faminto[9]; tendo transformado água em vinho morreu com sede, e ainda que morrendo com sede fez jorrar do seu lado a água que nos purifica. As ingratidões não param por aí: tendo perdoado pecados reais[10] foi acusado de pecados fictícios[11]; tendo ensinado a não recusar a capa aos que pediam a túnica[12], morreu despido[13]. Prometendo que nos prepararia uma morada na casa do Pai[14] disse, contudo, não ter onde reclinar a cabeça[15]. Com sua saliva devolveu a visão a um cego[16] e a saliva que recebeu veio em forma de escarros de humilhação[17]. E depois de tudo o que sofreu da parte dos homens a eles deixou um Sacramento no qual doa-se a si mesmo.
            Transformando água em vinho a pedido de sua Mãe; curando; ressuscitando; perdoando; compadecendo-se; olhando com amor o jovem rico; sarando a orelha de um guarda que viera prender-lhe[18]; pedindo para que os guardas deixassem ir os discípulos; ajudando os discípulos na pesca; assando peixes para eles[19] etc. Tudo isso nos mostra o Redentor revestido de uma bondade sobrenatural que se revela, sem dúvida, em seus grandes atos, mas também em suas, por assim dizer, pequenas gentilezas.
            E para finalizar lembremo-nos de que Jesus ocupou grande parte de sua vida exercendo o ofício de carpinteiro, é o que a Escritura nos faz supor. E o que construiu Ele como carpinteiro? Mesas, cadeiras e provavelmente também outros objetos que se destinam ao conforto humano. E para mostrar que por tudo que Deus dá ao homem recebe deste ingratidão, também nisso a recebeu, pois de madeiras e pregos deu ao homem consolo e de madeiras e pregos recebeu do homem a cruz.


[1] (Marcos 10, 21; Mateus 11, 29; Mateus 9, 36; João 18, 8 etc.).
[2] (João 11; Marcos 5, 35-43).
[3] (Mateus 9).
[4] (Marcos 5)
[5] (Marcos 5, 25-34).
[6] (Mateus 14, 13-21).
[7] (João 2).
[8] (João 21, 6).
[9] Desconheço qualquer passagem da Escritura que diga isso, mas acredito que se possa supor com um grande grau de certeza.
[10] (João 8; Mateus 9, 2).
[11] (Mateus 26, 4).
[12] (Mateus 5, 40).
[13] (décima estação da Via Sacra).
[14] (João 14).
[15] (Mateus 8, 20).
[16] (João 9, 6).
[17] (Mateus 26, 67).
[18] (Lucas 22, 51).
[19] (João 21, 9-10).

quarta-feira, 13 de março de 2019

COMENTÁRIOS SOBRE AS TENTAÇÕES QUE JESUS SOFREU NO DESERTO


         

         A Tradição da Igreja já deve ter dado muitas explicações e interpretações satisfatórias a respeito das tentações que Cristo sofreu no deserto. Sem querer ir contra qualquer interpretação autorizada gostaria, no entanto, de tecer alguns comentários que me ocorrem. Se eu disser apenas o que já foi dito contento-me com haver refletido sobre o assunto e repetido as verdades católicas; mas se eu errar em algo desde já renuncio ao erro e me submeto à interpretação correta dada pela Igreja.
            As tentações do Demônio parecem, à primeira vista, bem pueris: transformar pedras em pães; se lançar do alto do templo; adorá-lo. Elas só adquirem um significado profundo quando são vistas como paradigmas ou como símbolos universais das tentações que o homem sofre neste mundo. Outra coisa que faz com que soem pueris é o fato de serem apresentadas ao próprio Deus que é por essência imutável e incorruptível. Acredito que o mistério da Encarnação estava escondido para o Demônio; esta seria uma forma de explicar sua ousadia. Corrobora essa hipótese o uso, nas duas primeiras tentações, da condicional “Se és Filho de Deus...” como se estivesse provocando e ao mesmo tempo sondando. Outra coisa que chama a atenção é a fraca retórica utilizada pelo tentador: apresenta as tentações de modo simples e direto, bem diferente dos longos diálogos sofísticos que emprega quando tenta os homens. Talvez a razão dessa fraca retórica seja o modo categórico e inapelável com que Jesus responde; Ele não dialoga com o Demônio, Ele o vence. Isso nos ensina a não dialogar com as tentações e nos mostra que se o Demônio é muito mais desenvolto conosco é porque não nos dispomos, muitas vezes, a respondê-lo com a decisão necessária.
            As duas primeiras tentações mais parecem provocações; já a última se afigura muito mais séria: a proposta de um pacto, de uma troca. E nesta diferença entre as tentações mostra-se algo característico das investidas diabólicas: o uso de rodeios para chegar aonde realmente quer. Olhando por este ângulo parece claro que aquilo que o Demônio principalmente queria está expresso na última tentação: ser adorado.
            Nas duas primeiras tentações o Diabo pede um voltar-se desordenado para si mesmo; um envaidecer-se; uma demonstração de poder etc.: “Se és Filho de Deus...” são as tentações do orgulho. Na última pede uma humildade às avessas: pede para que Jesus se submeta a um outro, no caso ao próprio Demônio. Aqui se nota novamente um “crescendo”: do culto de si mesmo para o culto ao Tentador. O culto de si mesmo se dirige para o culto satânico; e se nem sempre o orgulho humano desemboca no satanismo explícito, não se pode negar que na soberba já há, ao menos implicitamente, um pacto com o adversário. Assim como o bem verdadeiro nos leva para a fonte de todo o bem, o orgulho nos leva para o primeiro orgulhoso.
            É de se notar que o Tentador oferece bens temporais nas três tentações. Por que não oferece bens eternos? Não é ele um grande mentiroso? Não costuma oferecer o que não pode dar? Por que então, nesse ponto, parece haver nele certa sinceridade ao não oferecer um bem infinitamente mais perfeito? Poderia, por exemplo, oferecer o Paraíso em vez de reinos com suas glórias efêmeras. Contudo não há sinceridade no pai da mentira; bem diversa é a razão que o leva a oferecer apenas bens temporais. Se oferecesse bens eternos acabaria por inocular certa boa vontade no homem, fazendo-o tender para o sobrenatural, fazendo-o preferir a beatitude que só Deus pode dar; voltar-se-ia então contra si mesmo e acabaria por fazer o homem voltar-se para Deus. O Demônio parece assim obrigado a oferecer as quimeras passageiras deste mundo cheio de ilusões; por isso os erros que propaga sempre desembocam no materialismo. Nosso Senhor, pelo contrário, vence todas as tentações citando Deus e apontando para os bens eternos: “Não só de Pão vive o homem...Não tentarás o Senhor teu Deus... e só a Ele servirás”.
            A natureza angélica é mais perfeita que a natureza humana. Rebaixando-nos ao mundo natural, o Demônio nos coloca em desvantagem e nos vence inexoravelmente; não é sem razão que Nosso Senhor venceu as três tentações fazendo referência a Deus, pois Deus pode nos elevar ao plano sobrenatural da Graça, o que não nos impedirá de sermos tentados, mas teremos ao nosso lado a Santíssima Trindade, Nossa Senhora, São José, os Santos todos, São Miguel, São Rafael, São Gabriel, o nosso anjo da guarda e todos os demais anjos da corte celeste. Assim o desfecho das tentações sofridas por cada membro do corpo místico será o mesmo que tiveram aquelas que sua adorável cabeça sofreu no deserto.